quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

PAI

Essa é a primeira vez que abro, literalmente, meu diário pra mostrar aqui...

Quem já é meu leitor de muito tempo, ou que acompanhou os últimos posts, sabe que eu não tenho só aqui pra desabafar. O meu principal, e desde 2005, é o diário físico. Nele sinto mais liberdade de escrever, pois sei que o acesso não será tão fácil quanto aqui.

O que vou contar aqui – e que contei nele – foram os fatos da segunda-feira (12). Algumas coisas terei que esconder por serem escritas muito pessoais, mas garanto que 90% será registrado logo abaixo. Os fatos não estão tão detalhados e nem na ordem, pois a minha cabeça estava a mil. Penso que mesmo assim vai dar de entender. Vou tentar ser o mais fiel.

Para deixar claro na leitura, somente os trechos em itálico são os escritos do diário. O restante foi acrescentado por mim na medida que lembrava dos detalhes.
 
Paciência e vou começar agora.


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12/02/2024, SEGUNDA-FEIRA
 
Difícil começar a escrever hoje aqui, mas sei que é necessário. Acordei com Joelma batendo a porta do meu quarto. Eu já imaginava que notícia seria. A tia já estava “acudindo” a mãe que não parava de chorar. O meu pensamento era no Eduardo. Como eu iria explicar aquela situação?

Joelma, meio desorientada, vendo que eu já vi a mãe chorando, disse que o Dayson, meu irmão, pediu pra que eu ligasse pra ele. Certamente ela já sabia, mas não queria me dar de cara a notícia. Liguei pro Dayson que logo me atendeu. Na verdade, só depois soube que eu falei com o Alyson, meu irmão mais novo. Nossas vozes são todas parecidas e juro que naquele momento não consegui identificar. Na minha cabeça, a voz que falava no fundo do telefone era a mesma que falava comigo.

Acho que o Alyson que me informou tudo e eu não tive tanta reação. Ele falou: "O pai faleceu nessa madrugada!". Completou dizendo que estavam organizando as coisas e que iria me ligar de volta se precisasse de algo. Fiquei sem reação e desligamos a chamada.

Voltei pra sala pra ver a mãe, que não parava de chorar. A tia tentava confortar o máximo, mas já vimos essa mesma cena sete anos atrás quando minha avó faleceu. O choro era alto e isso maltratava o coração da gente por ali.

Por algumas vezes eu fiquei parado, imóvel, tentando entender a situação. No fundo eu sei, de fato, porque (ainda) estou sem o meu coração ficar acelerado ou ainda não ter chorado. Só fico me perguntando o porquê de estar assim.

Em instantes, a casa foi tomada de pessoas. A maioria das pessoas já estavam sabendo e começaram a organizar a casa pra receber o corpo. Foi numa rapidez tão grande que, na minha cabeça, em 5 minutos a casa já estava limpa, vazia e organizada. Isso meio que me assustou.

Aproveitei que mesmo ainda não tendo muita gente, arrumei o quarto rapidinho, limpei algumas coisas, pois sabia que não ia sair de dentro dele quando o corpo do pai chegasse. Assim como não vi, em 2017, a minha avó no caixão, não queria ver o pai. Inclusive, tentei me preparar psicologicamente pra insistência das pessoas que não entendem e nem aceitam as nossas escolhas.

Fiquei do lado do Eduardo até ele acordar. O sono dele é um pouco pesado porque diante de muito choro alto da mãe e barulho de pessoas transitando a casa, ele continuava ali sonhando.

Não sei exatamente que horas ele acordou, mas quando acordou, comecei a conversar com ele:

– Oi, Du! Dormiu bem?, falei segurando o choro e pedindo a Deus as palavras certas.

Ele confirmou com a cabeça que sim.

– Preciso contar uma coisa pra você... Você vai ver a vó chorando... O seu avô foi morar no céu, ele não vai mais morar aqui com a gente.

Ele fez uma cara fingindo um espanto e deitou rápido na cama. Ele ainda não entende.

Pedi pra que ele cuidasse da vó, obedecesse... Ele ficou só confirmando.

Pedi pra ele levantar pra tomar banho, peguei na mão dele e abri a porta do quarto. Quando ele olhou tudo vazio, ele: "Nossa, a casa está bem vazia!". E segui com ele pro quintal.

Fui com ele ver a plantação de milho, depois dei banho nele. No banho ele me contou que havia sonhando com o Pokémon. Ele se vestiu depois, preparei o leite dele na mamadeira, ele tomou, e tivemos outra conversa.

– Du, você entendeu o que falei sobre o seu avó?

Ele riu e disse que esqueceu, enquanto escondia o rosto debaixo do travesseiro da cama do Dayson.

Eduardo, o seu avô foi morar no céu, por isso que a sua avó está chorando.

Aí ele:

– Quer dizer que agora só vai morar aqui eu, a minha vó, você, o Dayson e o meu pai?

E eu disse que sim. E foi aí que ele me surpreendeu:

– Peraí, o meu avô morreu?

Confirmei com a cabeça, ele fez uma cara real de espanto e ficou olhando pros lados com uma pausa grande de silêncio, tentando assimilar o que estava sendo dito.

Nunca imaginei que fosse dar uma notícia dessas pra ele.

Eu não esperava que ele fosse ter uma reação exagerada mas também não esperei que ele fosse ficar normal. Achei que ele iria ficar triste. É... apesar de já ter 6 anos, ele ainda não entende muita coisa.

A tia (Jesus) sempre é a tia que a gente nunca teve. Ela nos ajuda em tudo e é muito apegada ao Dayson. Eu acho incrível a força que ela tem. É uma mulher de se admirar e de desejar só coisas boas na sua vida. Ela fica sempre a frente de tudo, sempre prestativa e verdadeira. Posso dizer que o nome dela é "resolução". Não há dificuldade e tempo ruim pra ela. Precisou, ela está lá, mas sempre sendo justa.

Agora, 11h04, as coisas estão normais. A mãe não está chorando. Muitas pessoas estão conversando com ela e ouvi até umas risadas. Tenho certeza, porém, que quando o corpo do pai chegar vai ter muito choro.

Ontem antes de dormir perguntei o Dayson como o pai estava e ele disse que com muita dor na perna que fez com que ele até chorasse. Disse que a enfermeira aplicou medicação e que depois de 10h iria aplicar novamente.

Eu sei que tô contando tudo fora da ordem, mas é o que a minha cabeça vai lembrando.

* * *

💙 Infelizmente não tive uma vivência com o pai. A gente não era de diálogo, de afeto ou qualquer relação afim. Por alguns anos tentamos por conta do trabalho, mas a gente não conseguiu se alinhar.

Não sei quando se deu esse ponto de partida, não saberei jamais agora. Fico pensando que talvez seja (...). Não sei se ele criou expectativa em mim e possa ser que eu até o decepcionei.

Foi muito estranho não termos uma relação de pai e filho. De não ter abraço, amor, cuidado... Isso me faz lembrar o que nunca esqueci na vida. Quando eu era criança, acho que tinha a idade do Eduardo hoje, uns 6 anos, mãe comprou uma caneca pra dar de presente pra ele de aniversário ou dia dos pais, não sei. Só sei que ele me pegou como eu pego o Eduardo hoje em dia: por debaixo dos braços, levanto e abraço. Eu lembro até hoje desse abraço e do cheiro da roupa após um dia de trabalho de vigilante na fábrica.

Certeza que herdei muita coisa legal do pai: a letra bonita, a organização, o cuidado e... posso dizer que um pouco da paciência?

Ele sempre engoliu muita coisa dentro dessa casa e arrisco que a bebida tenha sido a válvula de escape.

Quando eu era pequeno lembro que via ele fumando e até comprava cigarro pra ele com apenas uma moeda de R$ 0,05. Com o tempo, ele, por vontade própria, decidiu parar. Era assim que esperava que fosse com a bebida, que um dia ele fosse parar. Não parou!

Nos últimos meses vi o pai mais velhinho, caminhava mais lento, cabelo e barba branca, assistindo canal religioso e na maioria do tempo dormindo. Eduardo sugava a energia pouca que o pai ainda tinha, mas sei que ele gostava.

Jamais quero esquecer, por isso registro aqui, quando o Eduardo, de pé no sofá, abraçava o pescoço do pai por trás enquanto se acabavam de rir de vídeos engraçados de bois atacando pessoas na arena. Não lembro se filmei esse momento, mas acho que não.

Espero que em 6 anos o Eduardo possa entender que foi feliz com o avô dele. Vou tentar sempre manter as lembranças boas... Parei e pensei aqui em como será daqui pra frente. Sei que não somos eternos, mas se adaptar a uma nova vida não é fácil.

Quero tirar um aprendizado de tudo isso, quero ser igual o pai, com todas as suas principais qualidades. 💙

* * *

Por aqui, deixo registrado esse momento. Que possamos seguir firmes nessa vida e que o amor, compaixão e paciência caia sobre essa casa e em mim também - eu sei que preciso demais.

O dia vai ser longo... Deus, ajuda a mãe. Eu não tenho força pra nada!

11h41

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O corpo do pai já chegou por aqui. Ouvi o desespero da mãe, mas até que foi rápido. Não tenho ideia de quantas pessoas têm ali na sala e a minha ideia é ficar aqui dentro desse quarto até que isso acabe.

Acabei de perguntar pro Dayson com quem que a mãe está conversando, e ele acaba de me dizer que com a vovó, mãe do pai, graças a Deus!

Espero que sempre tenha alguém pra conversar com a mãe, certeza que sozinha ela vai começar a chorar.

A Karen tá aqui no quarto comigo, eu também não quero ficar sozinho, pois sei que o meu pensamento vai começar a voar.

O clima aqui tá estranho, não vejo a hora de tudo isso acabar.

13h45

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Karen acabou de sair daqui. Foi a primeira que veio. Depois dela a Juliana apareceu, depois a Jessica, o Jardel e a Elciane. 

Juro, eu tô normal. A ficha ainda não caiu de fato. É muito estranho o dia de hoje. Diferente do dia da minha avó, o silêncio paira mais por aqui.

(...)

Tive que ficar registrando aqui enquanto tô só. Não posso deixar os meus pensamento tomarem de conta senão vou querer chorar.

Sobre chorar, enquanto tem gente aqui conversando com ela, a mãe, ela para de chorar, mas tenho que me preparar pra amanhã às 6h quando for a hora do enterro.

Escrever isso me dá uma dó tão grande, pois as coisas vêm na cabeça e caio na real que o corpo do pai está ali na sala.

Queria muito agora o abraço do Eduardo, ao mesmo tempo que não quero que ele esteja aqui vivendo toda essa situação. É certeza que ele está se divertindo agora e é assim mesmo que sempre quero ver ele. (Eduardo estava na casa da minha cunhada desde antes do corpo chegar em casa)

Meu coração começou a doer agora, pois sei que tenho que encerrar essas linhas por ora. Que esse dia acabe logo!

18h19

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Joellcy acabou de vir aqui no quarto me avisar que o Eduardo chegou. Pedi pra ela dizer pra ele vir aqui.

Dessa vez ele chegou com um semblante mais triste e automaticamente, me abraçou. Eu senti aquele abraço gostoso e falei:

– Você tá triste? O que eu falei hoje de manhã?
– O meu avô... (começou a embargar a voz) O meu avô está no céu...

Chorei junto com ele enquanto sentia o abraço. Olhei rápido pra minha prima com sua mão ainda no trinco da porta e ela também começou a chorar vendo aquela cena. Agora essa cena fica registrada na minha memória.

Logo, ele viu um "sorvetinho" que trouxeram pra mim, comeu, esqueceu e saiu, só que antes de ir disse que não iria dormir comigo, mas com a Fran.

Com detalhes:

Do meu lado tinha um pote de biscoito, "sorvetinho", vende na padaria, que a Karen trouxe mais cedo pra eu comer. Ao ver, rápido ele esqueceu o que aconteceu. Sem pedir, pegou o pote, abriu, comeu o primeiro "sorvetinho" e depois pegou mais um. Queria sair com pressa de dentro do quarto, com medo da Fran (minha cunhada) deixar ele, já que ele estava esse tempo todo brincando na casa dela.

Você não vai dormir comigo hoje?
– Não, eu vou dormir na casa da Fran.

E saiu.

Só depois Joellcy me disse que ao entrar em casa, antes de me ver, e passar pela sala, ele ficou olhando pro avô dele no caixão meio assustado, sem entender. Ao sair do meu quarto, parou e olhou novamente. Imagino o olhar curioso dele, mas certeza que essa lembrança ele vai esquecer rapidinho. Assim espero.

19h45

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No dia seguinte, após chegar do cemitério, não tive forças pra escrever mais no diário. Eu até que queria, já estava de plano, mas preferi não.

A primeira frase que iria registrar lá era: ACABOU! O meu sentimento de luto dura muito, eu não demostro, mas não via a hora de passar todo esse tempo. Antes mesmo disso acontecer eu já queria que o tempo passasse pelo carnaval. O sentimento de tristeza estava passando pela casa, estava ruim já ficar dentro do meu quarto direto.

Um pouco mais de 23h, Vitor, Ozana e Milene apareceram. Confesso que me surpreendi, mas eles conversaram muito comigo. Conversaram de tudo, menos muito sobre o pai. Tudo bem, eu queria mesmo era me distrair ali. Por alguns momentos fiquei pensando em tanta coisa que me deu um sono. Até que eu estava gostando deles ali, mas senti que queria dormir.

Um pouco mais de 00h eles foram embora e, com a Karen deitada e pronta pra dormir na cama do Dayson, fiquei um pouco no celular enquanto conversávamos. Minutos depois, Dayson apareceu, apagou a luz, deitou com ela e dormimos.

O meu sono foi pesado, pois não ouvi mais nada e só acordei um pouquinho depois das 6h quando vi o Alyson chamando ele, Dayson.

Lavei o rosto, molhei o cabelo e me preparei pra caminhar em direção ao cemitério.

Não tinha sol. Aparentava estar frio, pois estava nublado, por isso peguei um casaco e usei. No meio do caminho, acompanhando o caixão, tirei o casaco e coloquei no ombro. O clima começou a ficar abafado e comecei a suar.

Subimos uma ladeira do cemitério, colocaram o caixão pra fora do carro, e depois no buraco. Achei que naquele momento a mãe iria se desesperar assim como foi no dia da minha avó, mas me surpreendi. Ela chorou contida, alguém estava abraçando ela. E assim aplaudiram.

Fiquei de longe vendo aquela cena, não tive coragem de ficar próximo sentindo aquele clima de tristeza. O quanto eu puder não absorver essas coisas, tento fugir.

Vi a última par de terra sendo colocada, o contorno de pedra, a cruz feita na hora e a coroa de flores sendo colocada pela minha avó, Alyson e Dayson. A vovó é forte, ela é vivida, por mais que seu olhar fosse de tristeza. A minha vontade era de abraçar ela ali, então antes dela entrar no carro, sem ela ver, peguei na mão dela e abracei. Ela me abençoou e falou algumas coisas de amor.

Voltamos pra casa a pé. Karen e eu pegamos carona ainda próximo do cemitério.

Em casa, lavei os pés, acho que tomei um banho e dormi.

Por mais que eu tenha sido um dos únicos que ficou ali tranquilo o tempo todo, no conforto do meu quarto, na minha cama, minha cabeça estava a mil, portanto um cansaço mental. Por conta disso, como já suspeitava, tive um pesadelo: Eu estava na sala de casa enquanto acontecia  um apocalipse. Várias bolas de fogo estavam caindo na terra e muita gente gritando. Como eu já sabia que iria morrer, peguei o Eduardo nos braços e disse que amava muito ele. Até que tentei desviar dessas bolas de fogo e nesses nessas tentativas, vi minha avó materna, a Bó. Eu corri pra abraçar ela e automaticamente saiu um "eu te amo" de mim. Senti o corpo magrinho dela no abraço e em seguida acordei assustado.

Hoje (14), o clima lá em casa melhorou. Meus irmãos mudaram um pouco a casa, consertaram algumas coisas, lavaram as louças (eu também fiz isso e até o Eduardo pediu pra aprender como lavar e lavou os pratos dele)... A mãe está mais ativa e aqui e acolá lembra do pai, mas dessa vez sem choro. Não tem como esquecer da noite pro dia, né?

Aqui estou eu, às 14h40, no trabalho entre as demandas e este post.

Só o tempo vai se encarregar de nos confortar dessa dor que vivemos esses dias. Deus sabe o que faz e o Dayson disse que isso realmente teria que acontecer, pois o sofrimento seria bem maior aqui na Terra. O sofrimento dele aqui com certeza seria de todos nós.

Obrigado por ter lido até aqui e obrigado a todos que foram me visitar em casa.

Obrigado, pai, Manoel Antônio José da Silva. 🖤

2 comentários:

  1. Meus sinceros sentimentos meu amigo. 🖤🖤🖤

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  2. Meus sentimentos Anderson!
    Que Deus conforte todos vocês.

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